Olha, estou escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje
eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo
aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha,
por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que
sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo
mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho
engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar,
jogar, esconder, mentir. Eu não achei que ia conseguir dizer, quero
dizer, dizer tudo aquilo que escondo desde a primeira vez que vi você,
não me lembro quando, não me lembro onde. Hoje havia calma, entende? Eu
acho que as coisas que ficam fora da gente, essas coisas como o tempo e o
lugar, essas coisas influem muito no que a gente vai dizer, entende?
Pois por fora, hoje, havia chuva e um pouco de frio: essa chuva e esse
frio parecem que empurram a gente mais pra dentro da gente mesmo, então
as pessoas ficam mais lentas, mais verdadeiras, mais bonitas. Hoje eu
estava assim: mais lento, mais verdadeiro, mais bonito até. Hoje eu
diria qualquer coisa se você telefonasse. Por dentro também eu estava
preparado para dizer, um pouco porque eu não agüento mais ficar
esperando toda hora você telefonar ou aparecer, e quando você telefona
ou aparece com aquelas maçãs eu preciso me cuidar para não assustar você
e quando você me pergunta como estou, mordo devagar uma das maçãs que
você me traz e cuido meus olhos para não me traírem e não te assustarem e
não ficarem querendo entrar demais no de dentro dos teus olhos, então
eu cuido devagar tudo o que digo e todo movimento, porque eu quero que
você venha outras vezes e eles dizem que se eu mostrar como realmente
sou você vai ficar apavorado e nunca mais vai aparecer nem telefonar –
eu não agüento mais não me mostrar como sou. Hoje de manhã eu acordei
bem cedo, e depois de conversar com eles consegui permissão para
caminhar sozinho no jardim, eu disfarcei muito conversando com eles
porque queria muito caminhar sozinho no jardim. Àquela hora ainda não
estava chovendo, ou estava, não me lembro, ou havia chovido ontem à
noite, não, acho que não estava chovendo não, porque eu lembro que as
folhas estavam limpas e molhadas e a aterra tinha um cheiro de terra
molhada: comecei a lembrar, lembrar, lembrar e o meu pensamento parecia
um parafuso sem fim, afundando na memória, eu não suportava mais lembrar
de tudo o que se perdeu, tudo o que perdi, não fui e não fiz, mas não
conseguia parar. Então comecei a gritar no meio do jardim molhado com as
duas mãos segurando a minha cabeça para que não estourasse. Aí eles
vieram e disseram que não tinha jeito e que estavam arrependidos por
terem me deixado sair sozinho e que aquela era a última vez e que eu
disfarçava muito bem mas não conseguiria mais enganá-los. Eu disse que
não tinha culpa do meu pensamento disparar daquele jeito, mas acho que
eles não acreditaram, eles não acreditaram que eu não consigo controlar
pensamento. Então me deram uma daquelas injeções e eu afundei num sono
pesado e sem saída como este espaço dentro desses quatro muros brancos.
Foi depois que acordei, não sei se hoje ou amanhã ou ontem, eu te
escrevo dizendo hoje só para tornar as coisas mais fáceis, foi depois de
acordar que perguntei se você não tinha vindo nem telefonado, e eles
disseram que você não viera nem telefonara. É provável que estivessem
mentindo, eles dizem que eu preciso aceitar mais a realidade das coisas,
a dureza das coisas, e às vezes penso que tornam de propósito as coisas
mais duras do que realmente são, só pra ver se eu reajo, se eu
enfrento. Mas não reajo nem enfrento. A cada dia viver me esmaga com
mais força. Não sei se eles escondem de mim a sua visita, se não me
chamam quando você telefona, se dizem que já fui embora, que já estou
curado, não sei se você não vem mesmo e não telefona mais, não sei nada
de ninguém que viva atrás daqueles muros brancos, você era a única
pessoa lá de fora que entrava aqui de vez em quando. É verdade que eles
todos moram lá fora, mas é diferente, eles vivem tanto aqui dentro que
não consigo acreditar que sejam iguais os lá de fora, como você. Você,
sim, era completamente lá de fora. Digo era porque faz muito tempo que
você não vem porque guardei no meio das minhas roupas um pedaço daquela
maçã que você trouxe da última vez, e aquele pedaço escureceu, ficou com
cheiro ruim, encheu de bichos, até que eles me obrigaram a jogar fora.
Acho que os pedaços de maçã só se enchem de bichos depois de muito
tempo, não sei. Parei um pouco de escrever, roí as unhas, preciso roer
as unhas porque eles não me deixam fumar, reli o começo da carta, mas
não consegui entender direito o que eu pretendia dizer, sei que
pretendia dizer uma coisa muito especial a você, alguma coisa que faria
você largar tudo e vir correndo me ver ou telefonar e, se fosse preciso,
trazer a polícia aqui para obrigá-los a deixarem você me ver. Eu sei
que você quer me ver. Eu sei que você fica os dias inteiros caminhando
atrás daqueles muros brancos esperando eu aparecer. Eles não deixam,
acho que você sabe que eles não deixam. Não vão deixar nem esta carta
chegar às suas mãos, ou vão escrever outra dizendo que eu não gosto de
você, que eu não preciso de você. Mas é mentira, você tem que saber que é
mentira, acho que era isso que eu queria dizer preciso escrever
depressa antes que eu me esqueça do que eu queria dizer era isso eu
preciso muito muito de você eu quero muito muito você aqui de vez em
quando nem que seja muito de vez em quando você nem precisa trazer maçãs
nem perguntar se estou melhor você não precisa trazer nada só você
mesmo você nem precisa dizer alguma coisa no telefone basta ligar e eu
fico ouvindo o seu silêncio do outro lado da linha ou do outro lado da
porta ou do outro lado do muro ou do outro lado. Parei um pouco de escrever para olhar pela janela e principalmente para
ver se eu conseguia deter o parafuso entrando no pensamento. Acho que
consegui. Porque quando começo assim não consigo mais parar, e não quero
que eles me dêem aquela injeção, não quero ouvir eles dizendo que não
tem remédio, que eu não tenho cura, que você não existe. Eu acho graça e
penso em como você também acharia graça se soubesse como eles repetem
que você não existe. Depois eu paro de achar graça e fico olhando a
porta por onde não entra o telefone por onde você não fala e me lembro
do pedaço apodrecido daquela maçã e então penso que talvez eles tenham
razão, que talvez você não exista mesmo. Mas não é possível, eu sei que
não é possível: se estou escrevendo para você é porque você existe.
Tenho certeza que você existe porque escrevo para você, mesmo que o
telefone não toque nunca mais, mesmo que a porta não abra, mesmo que
nunca mais você me traga maçãs e sem as suas maçãs eu me perca no tempo,
mesmo que eu me perca. Vou terminar por aqui, só queria pedir uma
coisa, acho que não é difícil, é só isso, uma coisa bem simples: quando
você voltar outra vez veja se você me traz uma maçã bem verde, a mais
verde que você encontrar, uma maçã que leve tanto tempo para apodrecer
que quando você voltar outra vez ela ainda nem tenha amadurecido
direito.
(Caio Fernando de Abreu)
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